quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Justiça apresentada por Polemarco

Estudos sobre Platão - A República - Livro I - Análise socrática da definição de Justiça apresentada por Polemarco

O livro I da República de Platão contém um diálogo entre Sócrates e Polemarco sobre a natureza da justiça. Polemarco assume a tese, atribuída ao poeta Simônides, na qual o justo é devolver o que se deve aos amigos e aos inimigos, sendo o bem àqueles e o mal a estes. Sócrates se utiliza de um método para examinar esta asserção. Vejamos, como sugestão de interpretação, algumas importantes passagens:

Polemarco inicia afirmando que "é justo devolver aquilo que devemos". Sócrates encontra a exceção quando empreende o seguinte raciocínio: se alguém lhe pedir para guardar uma arma e após um tempo pedir sua restituição, o justo é devolvê-la ao requerente; mas no caso do requerente ter perdido a razão, e apresentar sinais de que tal restituição o será prejudicial, então o justo é não devolver a arma, e, portanto, não devolver o que se deve. Neste último caso, porém, quem não restitui e quem requere possuem uma relação de amizade.

Observe como Sócrates transporta a tese que primeiramente se apresentava em um âmbito estritamente impessoal para, em seguida, apresentar-se em um âmbito que pressupõe uma relação qualificada com o caráter de amizade/inimizade. Não importa, no fundo, que na relação com um desconhecido eu devolva, independentemente do seu estado mental, o que ele me conferiu; mas se a relação com outrem for de amizade ou inimizade, então o justo passa a ser que eu devolva a ele o que os amigos e os inimigos devem uns aos outros: o bem ou o mal, entendidos aqui como benefícios e prejuízos. No caso de um amigo depositar, quando em sã consciência, uma arma em minha custódia, e, após ter perdido a razão, requerer sua arma novamente, o justo é que eu devolva o benefício a ele, e que, neste caso, consiste em não devolver a arma. Torna-se necessário, encontrada a exceção, readaptar a tese, que agora se afigura ser justo devolver o que se deve, sendo o bem ao amigo e o mal ao inimigo. A impessoalidade na questão sai de cena e oferece espaço à relação pessoal.

Sócrates continua seu exame e questiona sobre a utilidade da justiça em tempos de guerra e em tempos de paz. A justiça se mostra útil em tempos de guerra, pois simultaneamente o justo pode ajudar seus amigos contra seus inimigos -- aliando-se a uns enquanto causa prejuízos aos outros. Em tempos de paz, no entanto, a justiça se mostra "pouco importante", já que ela somente se aplica a coisas inúteis, na medida em que possui seu valor enquanto retira o valor de uso daquilo depositado (dinheiro, ferramentas etc.). Também em tempos de paz a justiça se mostra duvidosa, pois o justo se mostra como um ladrão, enquanto guarda e restitui corretamente em favor dos amigos e guarda e rouba em prejuízo dos inimigos. Sem contar a possibilidade de um amigo se tornar futuramente inimigo e perder seu "bem" depositado. A utilidade da justiça perde sua credibilidade enquanto existir a possibilidade permanente do homem justo mudar da condição de amigo para inimigo.

Tentemos perceber como Sócrates raciocina sobre a possibilidade de se devolver o mal ao inimigo: caso se faça mal a um ser humano, este, obrigatoriamente, tornar-se-á pior do que antes. Imaginemos deixá-lo sem alimentação e sem saúde suficiente: ele se tornará desnutrido e terá sequelas físicas e mentais quanto a saúde. Da mesma maneira que não é dado ao calor esfriar, nem ao árido umedecer, não é possível que uma ação honesta torne alguém desonesto, nem a quem executa a ação, nem a quem aprende com ela, caso tal ação sirva de modelo. Se a ação boa não pode tornar ninguém mau, então a ação justa não pode tornar ninguém injusto. E é exatamente isto o que acontece, segundo Sócrates, ao se assumir a tese defendida por Polemarco: quanto mais se faz justiça, mais injustiça se causa, ao passo que fazer mal a um ser humano desonesto é torná-lo pior do que ele já é; consequentemente, se o homem justo é bom na medida em que cumpre a justiça com honestidade, e o homem mau é injusto na medida em que é desonesto, quanto mais bondade o homem justo fizer, punindo o homem mau, pior este homem se tornará e mais maldade (desonestidade) ele causará; quanto mais desonestidade causar mais injusto será, já que injustiça e inimizade é, neste caso, ser desonesto. A verdade é, segundo Sócrates, "que não é licito fazer o mal a ninguém e em nenhuma ocasião".

Como conclusão se pode perceber que do ato justo nasce a injustiça, tratando-se de uma contradição que destrói o sentido e a aplicabilidade do modelo encontrado, o que é absurdo para Sócrates.

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PLATÃO. A República de Platão; tradução de Enrico Corvisieri. Nova Cultural, São Paulo: 1999. 
 
Fonte: http://tiagomviolante.blogspot.com.br/2012/09/estudos-sobre-platao-republica-livro-i.html